É “anis” ou “aniz”? Porquê?
Novembro vai a meio e o Natal aproxima-se muito depressa. As lojas apresentam decorações alusivas à quadra natalícia e as ruas começam a enfeitar-se. Numa ruela, um comércio tradicional prepara guloseimas: bolos e biscoitos de todo o género com formatos caseiros. O aroma adocicado espalha-se pelas redondezas e chama pelos transeuntes. Entrei e andei a vistoriar o que me poderia adoçar a boca. Encontrei um pacotinho de “losangos de aniz”. Quando perguntei o preço e a empregada com menos de 60 anos mo disse, perdi o apetite. Entretanto, delicadamente, fui dizendo que “anis” se escrevia com “-s” em vez de “-z”, como figurava no pacote. Prontamente, respondeu-me que ela tinha aprendido com “-z”. Não quis alongar-me e saí. Fiquei a meditar na prontidão da resposta. Mesmo estando convicta da ortografia de “anis”, quis dedicar esta crónica ao assunto. É um presente de Natal para aquela confeitaria que me presenteou com uns biscoitos deliciosos, mas caros. Por que razão “anis” se escreve com “-s”? Reflectir sobre tudo, incluindo detalhes linguísticos como este, é um exercício que aprecio bastante porque coloca problemas que continuarei, aqui, a propor. Isto não significa que saiba tudo ou que o assunto fique, na íntegra, resolvido. Resumidamente, esta questão será do âmbito da Ortografia e da Escolarização. Antes da Reforma Ortográfica iniciada em 1911 e concluída em 1916, motivada pelo Governo Republicano da época, a Língua Portuguesa era escrita ao sabor da vontade individual. Uma das razões da infindável história dos acordos é, provavelmente, o facto de não haver uma ortografia uniformizada e oficial antes do início do século passado. A partir de finais da década de 20 do século XX, depois de algumas alterações pontuais à “Nova Ortografia” (Republicana), a escola e a burocracia estatal seguiam orientações precisas, deixando de lado o livre arbítrio. Quem foi escolarizado após 1945 aprendeu a escrever segundo o Acordo Ortográfico aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de Dezembro de 1945. Este documento foi, posteriormente, alterado pelo Decreto-Lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro. Fui consultar esse documento (cf. Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945, Base V, 5º ponto) de onde extraí a seguinte citação: «Distinção entre s final de palavra e x e z idênticos: aguarrás, aliás, anis, após, atrás, através, Avis, Brás, Dinis, Garcês, gás, Gerês, Inês, íris, Jesus, jus, lápis, Luís, país, português, Queirós, quis, retrós, resvés, revés, Tomás, Valdês; cálix, Félix, fénix, flux; assaz, arroz, avestruz, dez, diz, fez (substantivo e forma do verbo fazer), fiz, Forjaz, Galaaz, giz, jaez, matiz, petiz, Queluz, Romariz, [Arcos de] Valdevez, Vaz. A propósito, deve observar-se que é inadmissível z final equivalente a s em palavra não oxítona: Cádis, e não Cádiz.». Reconheço que a orientação não é muito esclarecedora. Às vezes, os linguistas são pouco explícitos. Contudo, “anis” aparece como exemplo para “s” final. Então, se acreditar na resposta que recebi para os “losangos de aniz”, foi a escola que falhou. Fazendo contas, de 1945 a 2014, passaram 69 anos e de 1973 (isto é, após a revisão do Acordo Ortográfico de 1945) a 2014, foram 41. Se as mudanças ortográficas categóricas ainda não se impuseram, imaginemos o que vai suceder com o Acordo Ortográfico de 1990 (AO1990), a “dupla grafia” e o critério do “facultativo”… Num jornal como o semanário EXPRESSO, que prontamente aderiu ao AO1990, vejo aparecer “expectativa” e “expetativa” ou “sector” e “setor, para dar apenas dois exemplos. Em casos como “anis”, não há, todavia, mudanças e isso verifica-se nos dicionários do tira-dúvidas. Sendo todos posteriores a 1945, registam, evidentemente, apenas “anis”. Se a grafia não coloca problemas, nos dicionários, a sua ocorrência em designações compostas deixa adivinhar uma variedade botânica com alguma complexidade. Aproxima-se o “anis” do “funcho”, como se pode observar pelas definições (cf. HOUAISS) de ANIS-ESTRELADO: “(…) badiana, badiana-da-china, badiana-de-cheiro, funcho-da-china.”, ANIS-DOCE: “(…) m.q. funcho”, FUNCHO: “(…) anis-doce, erva-doce, fiolho, maratro (…)” e FUNCHO-DA-CHINA: “(…) m.q. anis-estrelado (…).”. Com isto, estou a “meter a foice em seara alheia”, uma vez que de Botânica percebo o elementar. Porém, seria interessante explorar a relação do termo “pimpinela” com o de “anis”, visto que aquela designação, muito em uso na Madeira, remete para um vegetal. Fica para outra altura porque, agora, importa apenas o anis. Já sabemos que é fácil o que se entende e complexo, ou discutível, o contrário. Portanto, para um provável tira-teimas, nada melhor que um breve tira-dúvidas porque as dúvidas são o primeiro passo, mas não podem ser o último. Por que se escreve “anis” com “s”? Porquê? É porque é a representação etimológica (cf. tira-dúvidas) e ortográfica. É incontestável que se escreve assim: “anis”. Os cheiros e os sabores, sejam de funcho, erva-doce ou anis, também fazem pensar no Natal, sobretudo nos licores e nos doces que, tradicionalmente, surgem nesta época. Desconhecia os “losangos de anis”, mas fiquei a apreciá-los. São saborosos, com ou sem licor de anis a acompanhar.